sexta-feira, 2 de abril de 2010

História de um Cão

Eu tive um cão. Chamava-se Veludo
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo,
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos de um camarada,
Na hora da partida. O cão gemendo
Enfim — mau grado seu — o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo mudo
Olhava-o... o sol nas ondas se abismava...
"Adeus" — me disse — e ao afagar Veludo,
Nos olhos seus o pranto borbulhava.

"Trata-o bem. Verá que o rafeiro
Te indicará os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos."

Veludo a custo habituou-se à vida
Sua rugosa pálpebra sentida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Chorava o amigo que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante
Febril, convulso, trêmulo, agitando
A sua cauda — caminhava errante
À luz da lua — tristemente uivando.

Toussenel Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.

Lembro-me ainda trouxe o correio
Cinco meses depois do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Era uma artigo.

Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Prata.
Falava em rios, árvores gigantes.

Gabava o steamer que o levou: dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Toda sorte de risos e beleza.

Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota bem do melhor cursivo
Recomendava o pobre cão Veludo
Pedindo que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento
Me contemplou e — creia que é verdade.
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejaram de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente
Estendeu-se aos meus pés atencioso
Movendo a cauda — e adormeceu contente
Farto dum puro e satisfeito gozo.

Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada, Veludo me servia
Dei-o à mulher dum velho carvoeiro.

E respirei: Graças a Deus já posso
Dizia eu "viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil a um feio cão imundo."

Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Uma alazão inglês, de sela ou tiro.
Ou uma gata branca cinzadora.

Mas respirei porém: Quando dormia,
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver que era. Abri. Era Veludo.

Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo.
Farejou toda a casa satisfeito;
E — de cansado — foi rolar dormindo,
Como uma pedra junto do meu leito.

Praguejei furisco. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.

E resolvi-me enfim. Certo é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo.

Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo,
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante a instante o tufão crescendo.

Chamei veludo: ele seguiu-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto.
E a chuva meus cabelos fustigava.

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vagamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo — e com furor remamos.

Veludo à proa olhava-me choroso,
Como o cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo mar ergui o nos meus braços,
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte! Era pungente!

Voltei à terra — entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.

Mas, ao despir dos ombros meus, o manto
Notei — oh grande dor! Haver perdido
Uma relíquia que eu rezava tanto!
Era um cordão de prata: eu tinha-o unido.

Contra o meu coração constantemente.
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caíra além do mar profundo
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah! se Veludo

Duas vidas tivera — duas vidas
Eu arrancara aquela besta morta,
E aquelas vis entranhas corrompidas!
Nisto senti uivar à minha porta.

Corri, abri... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se aos meus pés — e docemente
Deixou cair da boca que espumava,
A medalha suspensa da corrente.

Fora incrível, oh Deus! — Ajoelhado
Junto ao cão — estupefato absorto,
Palpei-lhe o corpo, estava enregelado
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.


- Luís Guimarães Filho, 1878

Um comentário:

  1. curiosamente eu tive um cão imundo
    mas como também sou imundo eu o amava.
    de adestrato ele não tinha nada
    mais sua amizade era uma dádiva.
    mas um dia alguém tirou meu amigo de perto de mim, foi como uma espada no meu peito...
    deve ser por isso que sofro tanto quando algum "amigo" me cria mágoa.

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